"All beyond fat and flour..."

Alguns filmes são feitos para serem histórias de amor, e outros para contar uma história, com algum romance bobo no meio que acaba sendo o mote do filme, com a história servindo meramente de pano de fundo para o que o (geralmente) jovem casal vai fazer para que tudo dê certo. Casos desse último são Titanic (1997) e Pearl Harbor (2001), ambos bem fracos na história, especialmente o segundo, que é ruim de doer mesmo.

Mas tem filmes que deveriam focar na história do casal, e mostrar como a luta deles vai fazer com que tudo dê certo no final, de um jeito ou de outro, nem que seja com outras pessoas ou com o recomeçar de cada um, acordando para a vida; afinal de contas, não é só de happy endings que se faz a vida, e o cinema descobriu isso, especialmente com interessantes produções independentes.

Acho que esse Sentidos do Amor (2011) estaria mais para um filme de amor com um pano de fundo, em que o pano de fundo efetivamente acaba sendo mais interessante. Não se trata de uma catástrofe do tipo "Lá vem um meteoro", ou uma guerra nuclear, ou mesmo uma inversão climática completa. Tudo bem que a ideia não é tão original (José Saramago e seu Ensaio Sobre a Cegueira), mas um mundo sem sentidos é tudo de que precisamos para o pânico geral. E, é claro, isso vai trazer todo o tipo de complicações para o casal em questão, formado pelo "confortável" Ewan McGregor e Eva Green.

O interessante é ter colocado personagens que, por suas profissões, são diretamente afetados pela perda gradual dos sentidos, ao passo em que estão justamente nas frentes mais evidentes de combate a isso, cada um ao seu jeito: garantindo com que a vida continue do mesmo jeito, ou procurando uma cura, respectivamente. A boa e velha adaptabilidade do ser humano. Essa parte por si só já é curiosa, como parece absurda a ideia de continuar com tudo até um pouco em que se torna inviável (a cena do crítico de restaurante sem odor e paladar é particularmente interessante), até que a perda da audição torna tudo inviável e o pânico toma conta.

Mas vale a pena ver como a perda de cada sentido mexe com nossas emoções (ou instintos) mais puros, como o desespero, a fome, a raiva e, finalmente, a compaixão, ou alegria eufórica, todas sem a menor razão de ser, simplesmente... sendo. O ser humano despido de racionalidade, até que uma perda nos coloca de volta "nos eixos".

Particularmente, uma coisa chama a atenção, por mais breve que seja: a associação que é feita entre os odores e as memórias, mas que poderia ser feita com qualquer dos sentidos. A ideia de que vamos nos esquecer de pessoas e momentos, por não podermos mais sentir aquele cheiro específico, como Susan narra do cheiro de canela e o avental da avó, até que essas imagens simplesmente desapareçam. Não seria a mesma coisa com o gosto, como aquele gosto da massa do bolo que imediatamente nos remete à infância, ou o gosto daquele nhoque que sua avó fazia e ninguém consegue acertar? E sempre é tão forte a ponto de pararmos pra sentir, curtir a memória.

Nesse ponto, fica claro como dependemos da nossa visão (talvez Saramago tenha ido direto ao ponto em seu livro), de como VER tudo, ao mesmo tempo que foi uma grande evolução para nós, nos tornou dependentes dos olhos. Acho que é mais ou menos a relação que temos com a tecnologia, na verdade, até porque nossa capacidade de pura abstração não é exatamente unânime e uma competência geral. Confesso que eu mesmo morro de medo de ficar cego, tanto quanto de ficar velho. Tanta beleza por aí, e seríamos impedidos de observar? De ver quem a gente gosta sorrir? De ler?

(ok, tem braile, eu sei, mas ia demorar tanto pra pegar o jeito que só ia dar conta de ler livros infantis por um tempo)

Voltando ao filme, talvez seja por isso que a visão é a penúltima, e não fica claro que o próximo sentido a ser perdido é o tato, mas também quando isso acontecesse nem o filme nem a vida teriam muito mais razão de ser. A última cena, com a última narração, remetem a um amor puro, destituído de tudo aquilo que o complica e o atrapalha; não é a toa que duas pessoas com tantas dificuldades para darem certo em relacionamentos "precisam" perder tanta coisa para se acharem em meio ao caos que se instaura (vide a pura alegria de descobrirem juntos como espuma de barbear pode ser boa de comer). 

Mas fica também a sensação de que, às vezes, para que as coisas possam dar certo, é preciso que uma desgraça dessa magnitude aconteça. E daí, de que adianta?
3 Responses

  1. Mandyca Says:

    Ficou muito boa a critica Thiago! Achei muito legal porque eh uma historia de amor, mas que traz discussao e nos estimula a pensar e refletir sobre muitos assuntos! Voce trouxe mto bem na critica!! Achei legal no filme como ele associa a perda dos sentidos aos sentimentos.. mostra como somos frageis e temperamentais (as vezes com mto excesso). Fico feliz que voce tenha gsotado da indicacao! =))


  2. Unknown Says:

    Querido Paulinho,
    me parece que a história que vc narrou leva o homem ao limite dos sentidos, já que os vai perdendo gradualmente. Como se o tato se aguçasse no perder da visão, do olfato ou da audição. Triste, mas tem lá sua beleza.....o amor menos físico, menos sinestésico, torna-se sublime, puro, algelical. Mas pode-se amar apenas nas nuvens, ou o cheiro da terra úmida é que nos faz sentir a vida?! Intrigante....adorei! bjos