"I can't believe this is happening again!"

Alguns anos atrás, quando teve um show do Motörhead em São Paulo, li numa Showbizz, acho, que assistir ao show deles era mais ou menos como assistir a novelas no Vale a Pena Ver de Novo: você sabe exatamente o que esperar, sem surpresas. A mesma coisa eu li uma vez sobre o Black Ice, último disco do AC/DC: o som deles continuava a mesma coisa, sem experimentações ou inovações - e por isso continuava tão bom (quem gosta de Radiohead, por exemplo, sabe exatamente do que eu estou falando).

Se Beber, Não Case foi um smash hit de 2009. Filme relativamente barato - especialmente se comparado à renda, elenco competente sem grande nomes, um humor longe de ser apelativo como American Pie. Um típico caso de clássico instantâneo dos 2000's - ou, como diria Alan, "a 2000's classic". E mesmo a recepção da crítica foi positiva, como prova o 7.9 do IMDb e tantas coisas que li na época. Fui ao cinema e ria feito um retardado, fosse de um japinha pulando pelado de um carro, fosse de uma portada num bebê, fosse de fotos completamente sem noção, que fazem as minhas parecerem do batizado do menino Jesus. O filme é tão divertido que Mike Tyson pediu para participar de uma possível seqüência. 

Daí, você vai ver a segunda parte, Se Beber, Não Case 2. Mesmo título. Mesmo elenco. Mesmo diretor (Todd Phillips, . Mesma premissa. Mesma abertura, com um telefonema quase fatídico do Phil. Dessa vez vai ser diferente? As coisas vão mudar? Alguém não vai sumir? Doug (o branco, não o "black Doug") vai participar? As repostas, só pelo trailer, já estão na mesa: não, nada vai mudar. O filme é um grande "mais do mesmo", só que dessa vez em Bangcoc - a própria cidade, mais uma vez, é grande parte do filme, como Las Vegas foi no primeiro filme. Ninguém tem dúvidas de que vai ter casamento, até porque fica meio claro que é uma repetição da fórmula que deu certo - com vários ingredientes a mais, e que deixam o filme tão bom quanto o primeiro, se não até melhor. Troque até mesmo um tigre por um macaco, um dente por uma tatuagem, mantenha os óculos de sol, e peça para Bryan Callen deixar de ser o Eddie da capela para ser o Samir do strip club - sem avisar a audiência - e pé na tábua. 

E é justamente aí que está o mérito do filme: pra que inventar? É uma seqüência com os mesmos atores, os mesmos personagens, uma situação muito parecida, mas com novas piadas, novos absurdos - e novas fotos no final do filme, ainda melhores que as do primeiro!  Até Mike Tyson está de volta. Não tem invenção, não tem exagero, não tem coisas mirabolantes pra fazer tudo ser maior e melhor, naquela coisa americaníssima de estragar coisas que dão certo como são ao aplicar anabolizantes para bigger is better. Não é o que a gente quer, muitas vezes? Ninguém liga pra um velho amigo procurando alguém novo pra conhecer, ou pega um disco da banca favorita pra ouvir um som novo, cheio de experiências - é o comfort feeling que conta.

É praticamente um Vale a Pena Ver de Novo, mas que realmente vale a pena - especialmente se você tem fresco na memória o primeiro filme, que tem ótimas e sutis ligações para garantir que seja uma seqüência de verdade, e não só mais um na franquia.  

"You were my hero, Dicky."

Falar em filme com boxe é falar em qualquer um dos Rocky, a saga do lutador sofrido que sempre dá a volta por cima criado pelo Stallone - e que valeu um Oscar pro Sly, por incrível que pareça. E qualquer pessoa (ou cara, pelo menos) com mais de 25 anos deve ter ficado todo empolgado se foi ao cinema em 2007 ver Rocky Balboa e depois de tanta enrolação toca o tema dele na hora da luta final contra Mason "The Line" Dixon, uma espécie de Apollo Creed dos manos moderninhos. E foi difícil não conter a emoção, acompanhar a luta, desviar dos socos e vibrar com cada porrada dada, tanto pelo Rocky quanto nele.

Mas o fato é que Rocky Balboa é um personagem de ficção, ainda que bastante verossímil e carismático (menos na porcaria de Rocky V. Puta filme chato!). Há outros boxeadores em outros filmes, eu acho, mas esse ano Mark Wahlberg interpretou o real Micky Ward em O Lutador e Christian Bale deu show como o irmão problemático Dicky Eklund. De novo, história de boxeador com família, o cara sofrido, que vai se dar bem no final, e a platéia vai vibrar com ele. Até aí, ok.

Agora, o incrível é Christian Bale. Ele manda tão bem, mas tão bem que é impossível não simpatizar com ele e torcer por ele até mais do que pelo Rocky contra o Ivan Drago em Rocky IV. Só que ele não luta, a não ser contra policiais que descem o sarrafo nele. Quem luta, agora, é o irmão, Mick, enquanto Dicky, aos trancos e barrancos, do jeito dele, tenta ajudar, por mais que traga problemas ao irmão. Vivendo no saudosismo de uma única luta, de um futuro de "poderia ter sido", sem perceber a realidade (o programa da ESPN gravado durante o filme é a maior prova disso), da espiral downwards em que entrou, e sempre num claro caso de honest mistake, Bale rouba a cena, mais do justificando seu Oscar. Ver Micky se dar bem vai além de torcer por umas boas porradas e pelo lutador, mas você torce porque quem vai realmente ganhar é Dicky, mesmo que fora do ringue. Eu mesmo sempre achei boxe um esporte meio idiota (o que dizer, então, desses UFC da vida?), mas nunca fiquei tão emocionado e vibrante numa luta, pensando que cada soco bem dado por Micky é um soco na vida errada do irmão, que merece melhorar. Afinal de contas, o que dizer de um viciado em crack que consegue te fazer sentir simpatia?

O que é mais legal do filme, me ficou, é finalmente ver gente de verdade dando a volta por cima. Não é um Rocky Balboa, ou qualquer outro personagem que dá a volta por cima depois de uma separação, como alguma mocinha bonitinha. Agora é o cara feio, drogado, magrelo, malandro, que atrapalha - sem querer, e isso é o que ele tem de melhor, porque você sabe que ele não é um filho da puta, mas um cara que fez escolhas erradas na vida e paga por cada uma delas, sem querer passar as shares que o irmão recebe, sem querer. Quando a gente se acostuma a ver quem não presta se dar bem, é emocionante ver alguém que merece dar a volta por cima, e ainda de forma tão convincente quanto Christian Bale faz. A fala antes da luta final é o pico disso, que desarma a defesa ou desconfiança de qualquer um:

Dickie Eklund: Are you like me? Was just good enough to fight Sugar Ray? Never had to win, did I? You gotta do more in there. You gotta win a title. For you, for me, for Lowell. This is your time, all right? You take it. I had my time and I blew it. You don't have to. All right? You fuckin' get out there, and use all the shit that you've been through, all the shit we've gone through over the fuckin' years, and you put it in that ring right now. This is yours. This is fuckin' yours. 

Não são só os meninos que vibram e se emocionam com os socos que "Irish" Micky Ward acerta, ficando com a sensação de que o herói de verdade está de fora dessa luta.

"It could be worse than it looks."


Essa bíblia foi um e-mail escrito após uma tensa conversa sobre um livro/filme, famoso até, que usei para dar aula em 2008. Foi O Menino do Pijama Listrado, e a conversa foi sobre o final. É um post altamente spoiler, mas não consigo deixar de publicar, até porque ontem me falaram do filme. É, pra deixar registrado, uma das combinações mais interessantes entre livro e filme que já vi, porque um consegue complementar o outro naqueles detalhes que faltam, e fazem diferença.

Leia sabendo que eu conto o final do treco logo no primeiro parágrafo, e eu realmente passei aquela noite pensando nisso.

* * *

Ok, então eu fui pra aula ontem pensando no livro/filme, e me toquei que pelo menos eu tava tentando explicar o porquê da morte do Bruno sob um ponto de vista completamente errado, que era uma possível mudança no pai dele. Você ficou insistindo que eu disse que o cara era tão "máquina" que não era pai, e que nem a morte do Bruno mudaria isso - aparentemente "abstraindo" a parte em que eu dizia que a morte, sim, poderia operar algumas mudanças, e que um simples "susto" talvez não pudesse. Vamos deixar isso de lado. Mas, antes, queria só relembrar umas coisas que o pai dele fala no filme mesmo:

Father: I'm a solider. Soldiers fight a war. 
Mother: That's not war! 
Father: It's a vital part of it!

Father: They're not people at all, Bruno.

Em vez de pensar no que ele poderia fazer depois do Bruno, vamos pensar em antes dele. Levando em conta que o Ralf (não me lembro se o filme chega a mostrar o nome dele) é um pai, ele tem responsabilidades para com os filhos. Check. E ele é um nazista, oficial da SS (as "Tropas de Proteção", um grupo de elite que contava com homens racialmente selecionados e disciplinados, responsável pelos campos de concentração e extermínio nos países ocupados), ou seja: sabia muito bem onde estava se enfiando, e considerando tudo, acreditava bem no que estava fazendo - levando os filhos para um campo de extermínio. E foi ele quem arranjou a contratação de um professor, que diz o seguinte:

Bruno: There is such thing as a nice Jew, though, isn't there? 
Herr Liszt: I think, Bruno, if you ever found a nice Jew, you would be the best explorer in the world.

Você ainda falou sobre a parte em que a mãe deles tem a conversa com o pai, e no Study Guide "oficial" do filme que eu usei pra dar minhas aulas sobre o livro tem duas coisas interessantes. Seguem:

"But Bruno’s father, Ralf, has been promoted and the family will be moving from Berlin to the countryside. Bruno’s grandfather clearly disapproves. Bruno is told to think of it as “an adventure.” Dad says serving as a soldier is “about duty not choices.”

"Hints of the Holocaust waft into the seemingly protective confines of the family home. Bruno’s grandmother refuses to visit the house in the country. The strain of living within range of a concentration camp wears upon Bruno’s mother. She is willing to risk charges of disloyalty. Bruno’s mother decides, “This is no place for children.” Father begrudgingly agrees."

A primeira é autoexplicativa, e a segunda tem essa palavrinha mágica que, segundo o thefreedictionary.com, quer dizer "To give or expend with reluctance". Claro, ele concorda, mas insisto: não porque ele achava que os filhos deveriam ser levados para longe por risco de vida, mas pra que fossem criados longe do campo, onde não pudessem ver o que acontecia lá e, por consequência, fossem relativamente indiferentes, até porque estamos falando de um menino de 9 anos que tem uma percepção de mundo bastante limitada e de uma menina de 12 anos que é convertida pela ideologia em que o próprio pai acredita, e não é pouco - afinal de contas, ele se tornou comandante de um campo de extermínio. Será que ele não pensava que matava não judeus, mas pais como ele, mães como sua esposa, filhos e filhas como os seus próprios? "They're not people at all, Bruno". I don't think so. Ele fez sua escolha, e tomou sua parte (ativa) na Guerra e no extermínio dos judeus.

E daí que me veio a necessidade da morte do Bruno, independente do que viria depois: o preço que se paga. Você ontem falou do motto do filme, então vamos pensar nisso. Ok, então o Bruno entra no campo, mas é salvo antes mesmo de entrar na câmara de gás, a família toda toma um susto que faz com que o pai abra os olhos e "pule fora" de tudo. Eu continuo achando isso um tanto quanto impossível, mas vamos por esse viés. Então, ok. Aconteceu isso, ufa. Ele se salvou, "só" o Shmuel morre. Então, o que você vê? Qual o motto? Que, apesar de você acreditar na propaganda nazista, apesar de ser conscientemente responsável pelo extermínio de milhares de pessoas, apesar de você ter aceitado a oferta de levar sua família para um lugar como Auschwitz (que o Bruno chama de "Out-With" no livro, por errar a pronúncia, assim como ele chama o Füher de "Fury"), tem a chance de sair "limpo" da história, com sua família, enquanto as atrocidades no campo de extermínio continuam? A cena seguinte seria o quê? A família indo embora, com cara de alívio, e promessa de um novo começo, onde as coisas dariam certo? E os que ficaram para trás, os judeus? E o próprio Shmuel, você se esqueceu dele? Fatalmente, ele acabaria por morrer, como o pai dele, cuja morte foi autorizada por ninguém menos que o pai do Bruno. Um pai mata o outro, supõe-se que indiretamente mata o filho do outro, mas assim ainda sai "de boa" depois do susto, com sua família, seu filho, são e salvo? Seria esse o motto? Claro, você poderia dizer que ele seria atormentado pelo que fez, um tribunal do pós-Guerra poderia julgá-lo e condená-lo, mas não vamos entrar nessas possibilidades.

O negócio é que, por trás da história de amizade, de uma história vista através dos olhos de um menino de 9 anos, estamos falando do Holocausto, e a História sempre vem cobrar seu preço - um, por exemplo, por que a Alemanha paga até hoje. E o livro passa, sim, uma mensagem, por trás do que se vê na tela. O preço tem que ser pago, e é justamente aí que entra a morte do Bruno - ela é o preço. Independente do que viria depois, se vai mudar ou não. Continuo acreditando que só a morte dele poderia operar a mudança, o susto não seria o bastante, e não seria JUSTO. Até porque, uma coisa que o filme não mostra, os meninos vão pra Auschwitz de trem, e o Bruno vê o trem com os judeus nos outros trilhos, abarrotados de pessoas, os dois saindo juntos. Percebe a simbologia disso? Trens diferentes, confortos diferentes, etnias diferentes, o mesmo destino, o mesmo fim. Desde o começo, e o filme trata de mostrar isso, você tem que os meninos, por mais que sejam diferentes, são muito mais parecidos do que se imagina. A mesma idade, se dão bem, a mesma língua e até mesmo eles concordam que são relativamente parecidos - daí o plano do pijama pro Bruno. O pijama, aliás, é o momento mais alto dessa similaridade, porque é aí que eles se tornam comuns, se confundem, tanto que acabam tendo o mesmo fim.

Vale a pena ver isso de "fim": o pai junta-se ao Partido Nazista, acreditando nos ideais do partido, recebendo Hitler em sua casa, contra a vontade dos pais - lembra-se das cenas das festas na casa deles em Berlim? Ele se torna um oficial da SS pela lealdade e competência, vai para Auschwitz ser comandante, autorizar e gerenciar a morte de algumas milhares de pessoas que, para ele, "are not people at all". E leva sua família, sem se dar conta dos riscos de perigo aos filhos, tão compenetrado no trabalho que não percebe as sumidas do filho, e até aí nem a mãe, ou pelo menos ela é ignorante do paradeiro real do Bruno. Percebe como, de certa forma, he had it coming all along? Outra expressão que me vem em inglês é aquela the punishment should fit the crime, que é válida no Direito também, e qual punição para o pai seria mais apropriada para quem tomou parte na II Guerra do jeito que ele tomou? Se estivéssemos falando de um soldado, um sargento, alguém sob ordens que faz a guarda do campo, que mata um soldado inimigo na batalha, é uma coisa. Mas ele, de mãos limpas, foi o responsável pela morte de algumas milhares de pessoas, de crianças a idosos.

Você entende que, no fim das contas, a única justiça que o livro/filme poderia promover seria tirar do pai o filho, em compensação pelos outros tantos de filhos que ele tirou dos pais, ou dos pais que ele tirou dos filhos? O Bruno era inocente? Sim, mas até aí o Shmuel também era, e o pai dele [Shmuel] também, e ainda assim, morrem porque pessoas como o pai do Bruno acreditavam que eles não eram "people at all", e que ser soldado é "about duty, not choices", e ele fez a sua, que era tomar parte numa "vital part" da Guerra. Se o Bruno não morre, como fica essa justiça? Não fica! A mensagem que acaba sendo passada é a de que, não importa a atrocidade que você cometa, dá pra se arrepender e deixar tudo para trás, sem pagar um preço por isso - se o filme mostrasse alguns dos julgamentos de Nuremberg, e o pai sendo condenado, apesar do arrependimento, atéééééé daria pra engolir, mas não mostra. A gente tem que pensar que o filme vai até ali e acaba. A mensagem dele depende disso, não de suposições posteriores, mesmo que ele mudasse, fosse um pai dedicado, contra o Nazismo e blá blá blá. Seus crimes já foram cometidos, pessoas que morreram não iriam voltar. Achar que tudo ia se resolver e "dar certo" é ver a coisa com mais flores do que ela tem, uma solução meio filme mamão com açúcar, e apesar das crianças, O Menino do Pijama Listrado tá longe disso. Qualquer coisa com o Holocausto está longe disso, aliás.

Você achou justo o Col. Landa do Bastardos Inglórios conseguir se safar daquele jeito? Imagino que não, mas ele ia, e o símbolo que o Brad Pitt faz nele é um tipo de compensação, porque não dava mesmo pra ele sair tão incólume assim. O duro pro pai do Bruno é que o "símbolo" que ele recebeu foi mais duro. Assim como uma cicatriz, a morte do filho nunca ia se apagar. Um susto, com o tempo, poderia ser esquecido.

Enfim, escrevi uma bíblia e, confesso, ontem quase voltei da aula pra escrever isso, porque não saía da minha cabeça, depois que eu acordei da aula de Direito de Empresa. Cheguei atrasado e dormi o que "assisti" de aula. rs

Bom dia pra você!